22 de mar. de 2009

Do futuro...

Ela tinha 6 anos e estava sentada nos degraus da varanda de uma casa verde quando constatou que podia ler através das estrelas o futuro que não existia. Durante muitas noites, inclinava seu pescoço curto, gordinho e branco para se entregar ao dom, que perdeu quando adulta, de apenas apreciar. Inclinava de tal forma, que sem perceber se deitava no piso vermelho fosco gelado. Foi ali que se tornou sentimental. Sua mãe certamente não devia imaginar as consequências, se não a teria impedido. Numa dessas sessões noturnas de contemplação do céu com seus enfeites de lua e estrelas - fascínio este, que carregou até os últimos dias de sua velhice, quando os contemplou pela última vez dos degraus imaginários de sua janela aos 90 anos - a menina, olhou para os seus pezinhos, examinou primeiro um, depois o outro. Contou os dedinhos com as unhas pintadas de vermelho do pé direito, depois contou os dedinhos com as unhas pintadas de vermelho do pé esquerdo, e viu, de um jeito simples, objetivo e indolor, como só as crianças vêem, que tudo nela era repetição. Os pés tinham os mesmo números de dedos que os pés da mãe e do pai e da tia e da avó e do irmão. Mas eram diferentes dos do cachorro. A menina não entendeu o porquê, afinal o cachorro era tão recheado de humanidade pra ela quanto os outros que moravam na casa. Algumas noites depois choveu. Ela não pode sentar nos degraus porquê não haviam nem lua e nem estrelas. E estava molhado. E não podia.
No dia seguinte, a chuva tinha ido passear com sua prima trovoada talvez nos Estados Unidos. Ela sentou, dessa vez no degrau mais embaixo, porque dava pra ver melhor. Inclinou o pescocinho, reparou que algumas estrelas mudaram de lugar. Até hoje lembro bem do espanto dela, quando aos 17 descobriu que o brilho de uma estrela demora até 8 anos para chegar na Terra, e que muitas estrelas que vemos podem nem existir mais. Reparou que algumas estrelas haviam mudado de lugar. E diferentemente de um pensamento de criança, que talvez imaginaria que elas estariam de mudança ou brincando de pique-pega, a menina na sua infinita e sentimental infância, entendeu que, apenas com uma ou outra mudança, todas as noites eram feitas pelo mesmo céu que estava lá, as mesmas estrelas, quase a mesma cor, e a mesma menina, com os mesmo dedos dos pés, e o mesmo assoalho, e os mesmo degraus, e era sempre o mesmo... toda ela repetição... o mesmo céu... que sempre estava lá... e sempre esteve, e sempre estará... e a mesma menina... o mesmo pescoço... com os mesmos olhos e dedos... e sempre o que era... sempre o mesmo que será... e as mesmas estrelas... que sempre estiveram... e sempre estarão. Mudem os olhos da menina, ou a cor dos degraus, o mesmo céu. O mesmo céu. O mesmo céu. Mesmo quando ela virar estrela. O mesmo céu. E o cachoro morrer. O mesmo céu. E o degrau rachar. O mesmo céu. E a vida correr. O mesmo céu. Quando o futuro chegar. O mesmo céu.