26 de nov. de 2009

Do endurecimento

"Carcará, lá no sertão
é um bicho que avoa
que nem avião.
É um pássaro malvado,
tem o bico volteado
que nem gavião
Carcará pega, mata e come..."


A vida endurece a gente. A essência às vezes se mantém, mas não há nada de mais terrível que a bondade. Ela consome, engana, enlaça, esgana. Não há de ser puro, nem bom... não há de ser bobo. Bondade destrói, apaga, fere, sangra. Bondade é cruel. Hoje trago uma arma sem sorrisos apontada pras ameaças e atiro desprezo a qualquer movimento. Trago gosto de carne entre os dentes e não sepulto cadáveres de sonhos. Mastigo ilusões e espezinho esperanças. Desprezo profundamente os bons, os caridosos e os felizes. Nada mais prejudicial ao mundo do que esssa espécie altamente egoísta. Esses tolos não sabem que sua bondade, caridade e felicidade implicam na maldade, egoísmo e tristeza de alguns. É a lei do equilíbrio na coexistência. Luto, cavo, enlaço, sufoco, torço, corro, aguento, esfrego, amasso, seco, passo, xingo, sofro e mato. Nada me enoja mais do que os brandos e pacíficos. A vida é guerra, sangue sangrado, subtraído, chorado. A vida é caça, há de se lutar para não ser caçado. Que fique a bondade no outro mundo onde estão as coisas bonitas e belas, neste não há espaço, há somente instinto.

Se o meu mundo não fosse humano,
também haveria lugar para mim:
eu seria uma mancha difusa de instintos,
doçuras e ferocidades, uma trêmula irradiação de paz e luta:
se o mundo não fosse humano eu me arranjaria sendo um bicho.
Por um instante então desprezo o lado humano da vida
e experimento a silenciosa alma da vida animal.
É bom, é verdadeiro, ela é a semente do que depois se torna humano.
(Clarice Lispector)

23 de nov. de 2009

O amor é filme e Deus espectador


Tenho amado tanto. E só a ele, que continua acendendo tudo dentro de mim. Só ele que me alegro em ver que está ali ao meu lado sempre que acordo. Só ele que me faz rir, que quando me toca faz o mundo parar. E ele que é dono do meu amor, é com quem eu divido tudo, até minha alma. Se eu não o tivesse encontrado agora seria só silêncio, da boca ao coração.


Pretrópolis 20/11/2009


16 de nov. de 2009

Num doce tom de violeta

Não que estivesse triste,só não sentia mais nada
as pessoas falam coisas, e por trás do que falam há o que sentem, e por trás do que sentem há o que são e nem sempre se mostra.
A cada dia, viver me esmaga com mais força.
A única magia que existe é estarmos vivos e não entendermos nada disso.A única magia que existe é a nossa incompreensão.
Mas sempre me pergunto por que, raios, a gente tem que partir. Voltar, depois, quase impossível
Mudei muito, e não preciso que acreditem na minha mudança para que eu tenha mudado
E, de qualquer forma, às cegas, às tontas, tenho feito o que acredito, do jeito talvez torto que sei fazer
Sabe, eu me perguntava até que ponto você era aquilo que eu via em você ou apenas aquilo que eu queria ver em você, eu queria saber até que ponto você não era apenas uma projeção daquilo que eu sentia, e se era assim, até quando eu conseguiria ver em você todas essas coisas que me fascinavam e que no fundo, sempre no fundo, talvez nem fossem suas, mas minhas, e pensava que amar era só conseguir ver
tudo já passou e minha vida não passa de um ontem não resolvido, bom isso. E idiota. E inútil.
A verdade é que todos vão te machucar, você é quem deve decidir por quem vale a pena sofrer
não me venha com essa história de atraiçoamos-todos-os-nossos-ideais, nunca tive porra de ideal nenhum, só queria era salvar a minha, ,veja só que coisa mais individualista elitista, capitalista, só queria ser feliz, cara(...)
as pessoas suportam tudo, as pessoas às vezes procuram exatamente o que será capaz de doer ainda mais fundo
Mas a mim não importava o que se fora, queria o passo à frente...
(Caio Fernando Abreu)

11 de nov. de 2009

Do povo

Um café? Não obrigado.
Tudo flui, menos minha alma
Tudo gira, menos o meu mundo
Nascemos para engolir bosta, restos, extrumes
Para alimentar bons costumes
que não se aplicam à ninguém.

(Dani Zamorano)

* Poema inacabado pro povo que não é de "Manuel Carlos", poema inacabado pra gente.

10 de nov. de 2009

Do inominável


há coisas que não tem nome e nem precisam dele pra existir. puramente são e deixam de ser quando precisam deixar de existir. deixar de ser também é necessidade.



Onde agora? Quando agora? Quem agora? Sem me perguntar. Dizer eu. Sem pensar. Chamar isso de perguntas, de hipóteses. Ir em frente, chamar isso de ir, chamar isso de em frente. É possível que, um dia, o primeiro passo dado, eu simplesmente pare, ou, em vez de sair, segundo um velho hábito, passar dia e noite o mais longe possível de onde eu moro, não era longe. Isso pôde começar assim. Não mais me colocarei questões. Acredita-se apenas repousar, a fim de agir melhor em seguida, ou sem pensamentos rasteiros, e eis que em muito pouco tempo se pega na impossibilidade de jamais voltar a fazer coisa alguma. Pouco importa como isso se dá. Isso, dizer isso, sem saber o quê. Talvez eu não tenha feito senão inteirar um velho estado das coisas. Mas eu não fiz nada. Ostento ares de falar, não sou eu, de mim, não é de mim. Algumas dessas generalizações para começar. Como fazer, como eu vou fazer, o que eu vou fazer, na situação em que me encontro, como proceder? Por pura aporia ou melhor por afirmações e negações anuladas a torto e a direito, ou cedo ou tarde. Isso de modo geral. Deve haver outros vieses. Senão seria de se desesperar de todo. Mas é de se desesperar de todo. A reparar, antes de ir mais longe, em frente, que digo aporia sem saber o que isto quer dizer. É possível ser efético de modo que não à revelia? Eu não sei. Os sins e nãos, é outra coisa, eles me retornarão à medida que eu progredir, e o modo discreto de tirar do sério, cedo ou tarde, como um pássaro, sem esquecer um só. Diz-se isto. O fato parece ser, se na situação em que me encontro posso falar de fatos, não somente que eu vou ter de falar de coisas de que eu não posso falar, mas ainda, o que é mais interessante, que eu, eu não sei mais, não dá em nada. Não obstante, sou obrigado a falar. Não me calarei jamais. Jamais. (Beckett - O Inominável)

6 de nov. de 2009

Do Abreu

"Está tudo planejado:
se amanhã o dia for cinzento,
se houver chuva
se houver vento,
ou se eu estiver cansado
dessa antiga melancolia
cinza fria
sobre as coisas
conhecidas pela casa
a mesa posta
e gasta
está tudo planejado
apago as luzes, no escuro
e abro o gás
de-fi-ni-ti-va-men-te
ou então
visto minhas calças vermelhas
e procuro uma festa
onde possa dançar rock
até cair"
(Supostamente de Caio Fernando Abreu)

3 de nov. de 2009

Das trocas

"Hoje eu te ajudo, amanhã você me ajuda. A vida é uma troca."

(frase da vizinha quando o peso das sacolas era enorme e o calor me torrava a pele)